6 de fevereiro de 2014

“Prudência no ataque e na defesa"

Yep, é mesmo uma Taça Monumental



Sábado, 24 de Abril de 1948. (…) Eram 19.30 e Mestre Cândido ainda não entrara na sala onde, sobre uma mesa, estava o tabuleiro e respetivos bonecos destinados à lição de táctica a empregar no jogo do dia imediato. Tratava-se de um “Benfica-Sporting”, decidindo-se nesse encontro, não só o título de Campeão Nacional da época 1947/48, como ainda o Sporting poder conquistar, definitivamente, a Taça Monumental de “O Século”*. A importância do jogo tornava indispensável o emprego de uma táctica maduramente estudada e ponderada. (…)



Domingo, 25 de Abril de 1948. Na cabine do campo do Benfica, meia hora antes do jogo, toda a equipa estava pronta. Tenho uma ideia tão clara e precisa do tudo o que se passou que me parece estar a ouvir, neste momento, Mestre Cândido de Oliveira, dizendo-nos:  

   - Vamos ter uma partida até certo ponto difícil. O Benfica entra em campo com a vantagem de duas bolas; praticamente a ganhar por 2-0. Contudo, se cada um se compenetrar da sua tarefa e realizar como sabe e pode, confio na vitória que nos sirva para ganhar o campeonato e a Taça de “O Século”.

E Mestre Cândido iniciou a lição:

  - Muito cuidado na defesa, porque todos sabemos que o Benfica vai entrar a todo o gás, procurando, nos primeiros minutos, aumentar a vantagem. Não podemos consentir que tal se dê. O Travassos auxiliará a defesa, pelo que jogará ligeiramente recuado. Procurará lançar os seus companheiros da frente com passes longos, de preferência aos extremos. Assim que a nossa linha da frente perca a bola em favor do adversário, o Travassos entrará, imediatamente, a defender. O Vasques auxiliará a defesa mas terá de estar ao ataque sempre que a bola esteja no campo adversário. Assim, teremos à frente quatro avançados em luta constante com a defesa do Benfica.

  - E tu, Moreira, não largarás nunca o Julinho. Onde ele estiver estarás tu. O Julinho não poderá ganhar nenhum lance; tu não deixarás. Antecipa-te sempre. Não o largues.
  - Os médios não largarão os meia-ponta contrários, quando estes vierem para o nosso campo. Por outro lado, os nossos meia-ponta não poderão deixar em liberdade os médios do Benfica, quando sofrermos um ataque, mas quando formos nós a atacar acompanhem a linha da frente, mas não se esqueçam que o adversário poderá contra-atacar rapidamente. Cautela, portanto.
  - Vocês, os avançados, procurem fazer um ou dois golos o mais rapidamente possível.
  - Estou em crer que mesmo sem a colaboração 100% do Travassos, vocês quatro conseguirão vencer a defesa do Benfica.
  - Assim que estivermos em igualdade, quer dizer, se tivermos a sorte de fazer dois golos e eles nenhum, então, em igualdade, vamos jogar – embora com toda a cautela na defesa – o nosso jogo de ataque em forma.
  - Quero dizer-lhes, com toda a sinceridade, que estou absolutamente convencido de que ganharemos o encontro pela margem necessária. Se cada um cumprir, cabalmente, a sua tarefa, o campeonato será nosso”.

Claro está que outros pormenores foram, também, estudados, mas referi-los agora seria maçador. (…) A táctica adoptada pode sintetizar-se nesta frase: “Prudência no ataque e na defesa”. Ponto culminante a atingir: três golos sem resposta.

O sistema de jogo aconselhável devia assentar numa defesa e num ataque prudentes e cautelosos. Uma vez cortado o ímpeto inicial da equipa adversária e conseguidos os golos que nos dessem a igualdade (dois), então seria de boa visão forçar o ataque, procurando explorar a natural perturbação do adversário.

O leitor poderá fazer esta pergunta: E se o Benfica tivesse feito um golo antes de o Sporting o conseguir, como jogaria a equipa “leonina” desse momento em diante? Tentarei responder:

Mesmo que essa hipótese se verificasse, o Sporting não abandonaria o sistema inicial – pelo menos no decorrer da primeira parte. Tentaria organizar-se na defesa, se fosse possível melhor ainda do que até aí, para refrear o golpe de força que esse golo daria ao adversário. Pois não era de esperar que a equipa do Benfica, em tais circunstâncias, se lançaria ao ataque com redobrado ímpeto? Logo, para evitarmos um desastre, os cuidados na defesa deviam ser redobrados. Seria loucura a equipa do Sporting – ou qualquer outra em situação idêntica – lançar-se deliberadamente ao ataque. Sucumbiria inevitavelmente!

A equipa do Sporting (refiro-me à daquele tempo) não cometeria tal erro, nem o técnico responsável nos aconselharia semelhante processo de jogo. Os jogadores não tinham cabeça só… para usar chapéu!

Admitindo, contudo, que o Benfica, nesse jogo, tivesse conseguido uma vantagem de três bolas nos 45 minutos iniciais, na segunda parte, então, o caso mudaria de figura. De resto, esta hipótese foi prevista por Mestre Cândido de Oliveira. Nada andou – nem andava nesse tempo! – ao sabor das ondas…
Na segunda parte, dizia, a equipa do Sporting empregaria táctica diferente e faria como diz o Povo: “perdido por um, perdido por mil” e jogaríamos assim: médios e avançados, uma vez de posse de bola, atacariam em massa, em fúria. Quando surgisse o contra-ataque, os interiores e médios a defender com unhas e dentes, em marcação cerrada, com a ajuda dos três companheiros de defesa. Por nossa vez procuraríamos, também, contra-atacar rapidamente, de modo a aproveitarmos possíveis brechas no sistema defensivo do Benfica, provocadas pela fúria do seu ataque.

É evidente que esta táctica só é possível impor a um conjunto possuidor de extraordinária preparação física e que na cabeça dos jogadores haja massa cinzenta… utilizável. Não me afasto da verdade afirmando que a equipa do Sporting, nesse tempo, possuía as duas coisas: perna e cérebro. Deixemos o campo das hipóteses e voltemos à realidade do encontro disputado em 25 de Abril de 1948. O Sporting bateu o Benfica por 4-1, ganhando o título de Campeão Nacional e ficou, definitivamente, detentor da Taça Monumental de “O Século”!


*Troféu instituído pelo jornal O Século em 1938, a propósito do cinquentenário da introdução do futebol em Portugal (em 1888), e que premiava a primeira equipa a conseguir três títulos nacionais consecutivos ou cinco alternados, ou caso não se registasse nenhuma das situações, quem fosse campeão nacional no 10º ano da sua disputa, o que veio a acontecer em 1949, ano do primeiro tricampeonato leonino.


in Memórias de Peyroteo - A autobiografia do maior goleador do futebol português, págs 118, 119, 120, 121 e 122.


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