21 de novembro de 2016

Gomorra à Portuguesa

"O maior segredo do domador de leões não é a sua coragem, é entorpecer os leões com tranquilizantes antes do espectáculo." (frase que li algures mas já não me lembro onde)




                                                                                      *SPOILER ALERT*


Apesar de, no décimo e ante-penúltimo episódio da segunda temporada da série italiana, Gomorra, Ciro Di Marzio ter renegado a (lógica) oportunidade de matar a sangue-frio a informadora Patrizia, do seu arqui-rival Pietro Savastano, justificando-se com "fantasmas" de mortos antigos assassinados por ele e que não o deixavam dormir de noite, isso não significa que Ciro seja o "bom" da fita.




Certo, são todos uns filhos da mãe, mas uns mais do que outros.



Em Gomorra, não há inocentes. São todos culpados. É isso que eu gosto na série, a ausência da típica hipocrisia que encontramos na vida real ou nas séries norte-americanas. Em Gomorra, todos roubam, todos matam, todos esfolam. O marido mata a mulher antes que esta o denuncie à polícia, o braço-direito mata o chefe a pedido do rival, o filho atraiçoa o pai antes que este faça o contrário. Na série, há 2 personagens centrais, o "democrata" Ciro Di Marzio e o "ditador" Pietro Savastano (se quisermos ser rigorosos, podemos juntar a estes o filho de Pietro, Genny Savastano e o outro rival de don Pietro e Ciro, Salvatore Conte). Ambos querem ser os donos do tráfico de droga em Secondigliano, um bairro de Nápoles. E ambos são uns filhos da mãe. Ciro matou a própria mulher no final da primeira temporada. Ciro matou a mulher de Pietro. Pietro matou a filha de Ciro. Ciro matou...


Nesta segunda temporada, com Pietro foragido da polícia, Ciro consegue juntar todos os "donos" dos quarteirões do bairro de Secondigliano e introduz um espécie de "democracia", onde todos os "donos" dos quarteirões recebem o mesmo valor pela droga vendida em cada um deles. Uma espécie de "direitos de televisão centralizados" divididos por todos igualmente.

 Por momentos, a vida em Secondigliano parece idílica. Sem mortes, sem tiros e até com brinquedos distribuídos por Gabriele, o "Príncipe", pelas crianças do bairro. Príncipe é um dos "clubes" que concordou com a ideia dos "direitos tv centralizados", idealizada por Ciro, apesar de ser o mais talentoso cortador de cocaína do bairro e que, se quisesse, poderia ganhar muito mais se trabalhasse sozinho. Todos parecem felizes, excepto Pietro Savastano.






Nostalgicamente (des)esperando pelos tempos em que reinava sozinho, "don Pietro" não vai olhar a meios para conquistar novamente Secondigliano. Através de subornos, assassinatos e ameaças, Pietro consegue destruir a "democracia" conquistada por Ciro Di Marzio de modo a conquistar de novo o "seu" bairro.

É isso que me faz lembrar a série italiana: a Liga Portuguesa de Futebol Profissional. As rivalidades, as "vendettas", as polémicas... está lá tudo. Quem não se lembra da infame reunião de clubes numa bomba de gasolina? Digno de um episódio de Gomorra. Cada quarteirão de Secondigliano é um clube da LPFP. Cada clube defende... o que "don Pietro" decidir. É por isso que a LPFP é a única "grande" Liga europeia que não tem os direitos de tv centralizados. Depois de Pietro Savastano ter mandado assassinar a filha de Ciro e conquistado de novo o bairro, parecia que o Nápoles tinha acabado de ganhar o título em casa da Juventus. Futebol é poder.


Pietro Savastano 2-1 Ciro Di Marzio




Porém, há uma enorme diferença entre Gomorra e a LFPF,  a diferença entre realidade ou ficção. E não sei qual delas é mais difícil de engolir. É que, enquanto que na série há "presidentes" de quarteirões que não têm medo de confrontar Pietro Savastano, arriscando subir de "divisão" ou ser apertado por Malamore, chefe de defesa pessoal de don Pietro, na LFPF ninguém tem tomates para confrontar "don Pietro" cá do burgo. Na série italiana, além de Ciro, há vários exemplos de "clubes" que não tiveram medo de enfrentar Pietro Savastano, mesmo que isso significasse levar um enxerto de porrada pela afronta.




Malamore, a explicar que ninguém se mete com don Pietro.






Gabriele, o "Príncipe", o eterno sonhador


"Mais vale um dia de pé do que uma vida de joelhos", é o eterno lema presente em Gomorra, apesar da sede de poder de todos os protagonistas . Em Secondigliano, o dinheiro não vale de nada se isso significar passar os dias com a boca na pila de alguém. Gabriele, o "Príncipe", por exemplo, enquanto vivia na democracia de Ciro, estava, na realidade, a trabalhar para a família Savastano mas sempre quis usufruir daquilo que o "trabalho" lhe proporcionava, comprando grandes "macchinas" ou uma pantera para oferecer à sua namorada. "Princípe" ousou sonhar e no final do 7º episódio, don Ciro deu-lhe permissão sonhar eternamente, espetando-lhe uma bala na testa a sangue-frio.

No último episódio da 2ª temporada, Pietro Savastano consegue, finalmente, limpar a concorrência e reclamar para si novamente o bairro Secondigliano* como seu. Colocando todas as acções na balança que don Pietro utilizou para conquistar esta vitória, talvez a violência tenha pesado mais, mas as "ofertas" também tiveram um papel bastante importante, principalmente no que toca a condicionar elementos fora do bairro e mais institucionais, como polícias e políticos. Sim, conquista o poder quem já tem mais poder, eis o paradoxo que tanto vale para a ficção como para a vida real e que Bruno de Carvalho tão bem já deve ter percebido.


Não é por acaso que BdC tenha tido mais problemas com presidentes de clubes (Arouca, Marítimo...) em 3 anos do que Luís Filipe Vieira em 13. Na LFPF, vive-se de joelhos, à espera de esmolas. Não há ambição. Ninguém sonha. Sonhos no futebol português, só na Taça. Na LFPF, só se sonha ganhar ao Sporting e, em certa medida, ao Porto. Contra o Benfica, é derrota garantida. Seja através de ameaças ou de ajudas, a verdade é que LFV conseguiu ganhar o controlo do bairro "Secondigliano" e não há ninguém que o desafie (excepto BdC, o "Ciro"). A bonomia com que os clubes mais pequenos defrontam o Benfica é a maior conquista de LFV no "tugão". Tal como a Juventus em Itália. Os empréstimos, Miguel Rosa, compras de bancadas, compras de passes, oferta de receitas, treinos no Seixal... tudo ofertas que ninguém pode recusar.
















*Na última cena do último episódio, o perigoso Ciro (no sentido que não tinha nada a perder), emboscou don Pietro e assassinou-o à queima-roupa. Resta esperar pela 3ª temporada se Ciro recuperará Secondigliano ou se as raízes (o filho, Genny) que Savastano deixou no bairro cresceram o suficiente para (lhe) deixar o poder intacto...


11 comentários:

  1. Excelente, excelente analogia.

    Só mais uma coisa. Todos aqueles que vivem de joelhos, enriqueceram.
    De certeza que estão melhor na vida, em comparação com o dia em que foram para a presidência desses clubes. Já os clubes... estarão mais ricos?

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  2. Obrigado pelos comentários!

    @Cantinho, cada vez mais pobres mas felizes e contentes por perderem contra o "grande" Benfica!

    SL

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  3. Excelente texto! Analogia perfeita, na mouche. É este o nosso futebol português.

    PS: SPOILER GOMORRA: Já agora, tenho ideia de quem matou o Principe foi o Savastano pai.

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  4. Captomente,

    se estão felizes, então está tudo bem. O que é importante é a felicidade.
    Mas volto a perguntar: e os clubes (sócios e adeptos, jogadores históricos), estão felizes?

    é como o Valência: estarão felizes com o que fizeram ao seu clube?
    Não tenho pena do Valência, mas sim dos seus adeptos.

    SL

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  5. Falta saber quantas vezes irão ser compensados pelos pontos que tão fácil oferecem.
    Mas piada, piada, era eles entrarem na zona de despromoção- apesar de!

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  6. Aparte dos adeptos do Vitória Sport Clube e Boavista, talvez, (e Sporting e Porto, claro), todos os outros não se importam de perder contra o Benfica.

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  7. hoje tinha pensado escrever sobre este assunto na tasca ou no artista mesmo que nao fosse assunto de conversa pois parecia que ninguém tinha reparado no jogo de reabilitação benfiquista frente ao marítimo.
    após aquele empata no dragão que nao foi um empate foi uma derrota, uma derrota da alma, pois nao jogaram nada, assim com nunca jogam quando apanham uma equipa de jeito, e eles sabem disso, precisavam urgentemente deste jogo para limpar a imagem e o sentimento que lhes fica, nem que para isso tenha que lhes sair do bolso, sairá sempre mais barato em termos de investimento que a desmobilizaçao, a descrença e a duvida perante o seu real valor por parte da sua massa adepta
    a isso lhes tiro o chapéu a capacidade que têm de conseguir através de uma estratégia bem montada nao perder a sua clientela, mesmo que isso seja através de jogadas sujas, que de futebol ja nada têm.
    vai ser difícil, muito difícil
    sporting sempre

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  8. Grande analogia. Nao conheco a serie mas pela descricao ajusta-se na perfeicao ao que se passa no futebol portugues.

    Acrescento que eh muito dificil lutar contra quem tem num bolso a PJ, no outro bolso o Ministerio Publico e ainda parte do Governo na braguilha.

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  9. Caro Rodrigo,
    já vi a série há algum tempo e posso estar enganado, mas julgo que foi Savastano que matou Príncipe. Se a memória não me atraiçoa, foi exactamente essa morte que destruiu a "democracia" quando todos pensaram ter sido Ciro e começaram a desconfiar uns dos outros até a aliança implodir.
    aqui no futebol é o equivalente a um conselho de arbitragem que muda de chefe, um dolo sem intenção, e outros exemplos que tais, que minam a liga, geram discórdia e a impedem de evoluir e avançar no tempo.
    excelente post. excelente trabalho.
    abraço,
    joao

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  10. "Aparte dos adeptos do Vitória Sport Clube e Boavista, talvez, (e Sporting e Porto, claro), todos os outros não se importam de perder contra o Benfica."

    Concordo. Por isso é que, na época passada, as minhas "fichas todas" estavam no jogo do Bessa. Ali, sabia que iam jogar contra um verdadeiro adversário. Ganharam no último minuto. Nesse dia, tive mesmo a confirmação que jamais iriam perder mais pontos.

    Só uma nota final. Conheço muitos adeptos do Belenenses. Todos eles, "gostam" tanto do SLB como nós, a sério. O problema é que eles não mandam nada.

    SL

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  11. O orelhas disse alto e bom som algures em 2008 "É mais importante ter pessoas na Liga do que contratar bons jogadores.." pois bem!...esse foi o principio agora já vai mais alem clubes, jogadores , direções de clubes, e mais não sei quantas artimanhas que se vão sabendo muito timidamente por aqui e acolá.
    Aquilo é levado como se de uma religião se tratasse, está enraizado na sociedade portuguesa dou alguns exemplos:

    - Quem não é da cores deles, também não é bom chefe de família";
    - equiparar o seu estádio a uma catedral;

    entre outros, vaõ ser anos e anos a lutar contra isto.


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