29 de junho de 2013

João Rocha

Quando ainda mandava umas postadas no Cabelo, faleceu o ex-presidente do Sporting, João Rocha. Na altura, não escrevi nada sobre ele, porque não tinha nada a dizer (sou péssimo em elogios e não conheci o seu trabalho como presidente do Sporting) mas muitas pessoas o fizeram, entre ex-jogadores, dirigentes e jornalistas.

Guardei, precisamente, duas recordações de João Rocha contadas em primeira pessoa por dois jornalistas d'A BOLA, porque achei que simbolizavam o que era o homem e que ajudariam a quem não o conheceu - como eu... -  a entender melhor quem foi o 32º presidente do Sporting Clube de Portugal...



"Cheguei ao jornalismo no final dos anos sessenta (acho que não preciso de dizer que já foi no século passado). Era, então, um jovem estudante de medicina, com algum jeito para a escrita e com uma assumida paixão pelo futebol. Acompanhava, através de meu pai, o jornalismo desportivo, em especial de A BOLA, mas nessa altura não me passava pela cabeça fazer carreira de jornalista profissional.
Um dia, o Aurélio Márcio convidou-me para falar com ele no Diário Popular (um dos grandes jornais portugueses e uma grande escola prática de jornalismo) e convidou-me para ser colaborador do jornal. Foi como jornalista em formação do Diário Popular que conheci, pela primeira vez, João Rocha. Era um homem elegante no trato, com um lencinho a espreitar o bolso do casaco, empresário de sucesso, dos primeiros a perceber em Portugal a extraordinária importância do relacionamento comercial com a China.

João Rocha tinha frequentado o curso comercial da escola Ferreira Borges e fazia parte, com o meu pai e com o seu primo Egídio Serpa, da seleção de futebol que a representava. Falou-me desse tempo, quando o procurei para uma primeira entrevista, pouco depois de ter sido eleito, pela primeira vez, presidente do Sporting. Havia, aliás, uma simpatia especial do Popular pelo Sporting, uma vez que um dos seus principais administradores, o dr. Brás Medeiros, era, também, um grande sportinguista e dirigente do clube.

Durante treze anos muitas vezes nos cruzámos e convivemos. Em Portugal, mas também nos Estados Unidos, país de especial predileção de Rocha, onde o Sporting jogava, quase invariavelmente, em cada final de época naqueles jogos de pré-férias que serviam para o clube ganhar dinheiro, para os emigrantes portugueses matarem saudades dos seus clubes do coração e para os jogadores se divertirem à custa da ampla liberdade que, noutras circunstâncias, não teriam.
Nesses tempos, os jornalistas integravam as comitivas dos clubes e seleções. Viajávamos no autocarro dos jogadores, dormíamos nos mesmos hotéis, comíamos nos mesmos restaurantes. À noite, quando os futebolistas se iam deitar (alguns por pouco tempo), ficávamos a conversar, madrugada dentro, com os treinadores e dirigentes. Era uma relação quase sempre sadia e sem complexos. Haveria casos de promiscuidade e subserviência, sim, mas ainda hoje existem e não é por os jornalistas acompanharem as equipas.

João Rocha era um líder forte e firme. Tínhamos de ter cuidado para não corrermos o risco de ganhar, facilmente, uma posição dominante na relação com o jornalista. Era, no entanto, um homem sensível e preocupado com os outros. Tenho exemplos que o comprovam. Comigo passou-se um episódio curioso e que nunca esqueci. Numa noite, véspera de saída de A BOLA, em que o Sporting jogou, fiquei a trabalhar no meu quarto de hotel em Boston. João Rocha tinha oferecido um jantar aos jornalistas (o que era uma prática usual nesse tempo), mas eu recusei, porque tinha de trabalhar até altas horas. Pensava comer, já de madrugada, uma sandes ressequida, quando bateram à porta do meu quarto. Era uma empregada que me trazia um tabuleiro de imprevistas iguarias. João Rocha enviava-me o jantar com um cartão onde escrevera umas palavras amáveis em que manifestava consideração e até amizade.

Mais importante e significativo o episódio que se passou com o Nuno Ferrari, também nos Estados Unidos. O Nuno – um dos maiores fotojornalistas de todos os tempos – era reconhecidamente benfiquista, mas um homem e um profissional considerado e valorizado em todos os clubes, muito especialmente no Sporting e no FC Porto. Calhou-lhe, nesse verão, acompanhar a digressão do Sporting. Estava doente, tinha já tido sinais preocupantes de uma crise cardíaca, mas achava-se (como sempre) em condições de trabalhar. Longe disso. O Nuno teve um ataque cardíaco que poderia ter sido fatal. João Rocha estava por perto e enviou-o para a melhor clínica de Nova Iorque. Salvou-o. O ataque tinha sido muito forte e o Nuno Ferrari ainda ficou muito tempo entre a vida e a morte. Foi sujeito a demorados e dispendiosos tratamentos. Foi João Rocha quem assumiu, de imediato, a caução e responsabilidade pelo pagamento, fosse o preço que fosse.

João Rocha é, justamente, considerado o último grande presidente do Sporting. O homem perspicaz e lúcido que um dia me contou um segredo: “Vítor Serpa, o Sporting nunca poderá deixar de ser o mais eclético clube de Portugal. É aí que reside a nossa diferença e a nossa força. Se pensarmos apenas no futebol seremos mais pequenos que o Benfica, mas se formos o que só nós podemos e queremos ser, então seremos o maior clube português.”

Vítor Serpa, jornalista e director de A BOLA, 9 de Março de 2013


                                   
                                   

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