Yep, é mesmo uma Taça Monumental |
Sábado, 24 de Abril de 1948. (…) Eram 19.30 e Mestre Cândido
ainda não entrara na sala onde, sobre uma mesa, estava o tabuleiro e respetivos
bonecos destinados à lição de táctica a empregar no jogo do dia imediato.
Tratava-se de um “Benfica-Sporting”, decidindo-se nesse encontro, não só o
título de Campeão Nacional da época 1947/48, como ainda o Sporting poder
conquistar, definitivamente, a Taça Monumental de “O Século”*. A importância do
jogo tornava indispensável o emprego de uma táctica maduramente estudada e
ponderada. (…)
Domingo, 25 de Abril de 1948. Na cabine do campo do Benfica,
meia hora antes do jogo, toda a equipa estava pronta. Tenho uma ideia tão clara
e precisa do tudo o que se passou que me parece estar a ouvir, neste momento,
Mestre Cândido de Oliveira, dizendo-nos:
- Vamos ter uma partida até certo ponto
difícil. O Benfica entra em campo com a vantagem de duas bolas; praticamente a
ganhar por 2-0. Contudo, se cada um se compenetrar da sua tarefa e realizar
como sabe e pode, confio na vitória que nos sirva para ganhar o campeonato e a
Taça de “O Século”.
E Mestre Cândido iniciou a lição:
- Muito cuidado na
defesa, porque todos sabemos que o Benfica vai entrar a todo o gás, procurando,
nos primeiros minutos, aumentar a vantagem. Não podemos consentir que tal se
dê. O Travassos auxiliará a defesa, pelo que jogará ligeiramente recuado.
Procurará lançar os seus companheiros da frente com passes longos, de
preferência aos extremos. Assim que a nossa linha da frente perca a bola em
favor do adversário, o Travassos entrará, imediatamente, a defender. O Vasques
auxiliará a defesa mas terá de estar ao ataque sempre que a bola esteja no
campo adversário. Assim, teremos à frente quatro avançados em luta constante
com a defesa do Benfica.
- E tu, Moreira, não
largarás nunca o Julinho. Onde ele estiver estarás tu. O Julinho não poderá
ganhar nenhum lance; tu não deixarás. Antecipa-te sempre. Não o largues.
- Os médios não
largarão os meia-ponta contrários, quando estes vierem para o nosso campo. Por
outro lado, os nossos meia-ponta não poderão deixar em liberdade os médios do
Benfica, quando sofrermos um ataque, mas quando formos nós a atacar acompanhem
a linha da frente, mas não se esqueçam que o adversário poderá contra-atacar
rapidamente. Cautela, portanto.
- Vocês, os avançados,
procurem fazer um ou dois golos o mais rapidamente possível.
- Estou em crer que
mesmo sem a colaboração 100% do Travassos, vocês quatro conseguirão vencer a
defesa do Benfica.
- Assim que
estivermos em igualdade, quer dizer, se tivermos a sorte de fazer dois golos e
eles nenhum, então, em igualdade, vamos jogar – embora com toda a cautela na
defesa – o nosso jogo de ataque em forma.
- Quero dizer-lhes,
com toda a sinceridade, que estou absolutamente convencido de que ganharemos o
encontro pela margem necessária. Se cada um cumprir, cabalmente, a sua tarefa,
o campeonato será nosso”.
Claro está que outros pormenores foram, também, estudados,
mas referi-los agora seria maçador. (…) A táctica adoptada pode sintetizar-se
nesta frase: “Prudência no ataque e na defesa”. Ponto culminante a atingir:
três golos sem resposta.
O sistema de jogo aconselhável devia assentar numa defesa e
num ataque prudentes e cautelosos. Uma vez cortado o ímpeto inicial da equipa
adversária e conseguidos os golos que nos dessem a igualdade (dois), então
seria de boa visão forçar o ataque, procurando explorar a natural perturbação
do adversário.
O leitor poderá fazer esta pergunta: E se o Benfica tivesse
feito um golo antes de o Sporting o conseguir, como jogaria a equipa “leonina”
desse momento em diante? Tentarei responder:
Mesmo que essa hipótese se verificasse, o Sporting não
abandonaria o sistema inicial – pelo menos no decorrer da primeira parte.
Tentaria organizar-se na defesa, se fosse possível melhor ainda do que até aí,
para refrear o golpe de força que esse golo daria ao adversário. Pois não era
de esperar que a equipa do Benfica, em tais circunstâncias, se lançaria ao
ataque com redobrado ímpeto? Logo, para evitarmos um desastre, os cuidados na
defesa deviam ser redobrados. Seria loucura a equipa do Sporting – ou qualquer
outra em situação idêntica – lançar-se deliberadamente ao ataque. Sucumbiria
inevitavelmente!
A equipa do Sporting (refiro-me à daquele tempo) não
cometeria tal erro, nem o técnico responsável nos aconselharia semelhante
processo de jogo. Os jogadores não tinham cabeça só… para usar chapéu!
Admitindo, contudo, que o Benfica, nesse jogo, tivesse
conseguido uma vantagem de três bolas nos 45 minutos iniciais, na segunda
parte, então, o caso mudaria de figura. De resto, esta hipótese foi prevista
por Mestre Cândido de Oliveira. Nada andou – nem andava nesse tempo! – ao sabor
das ondas…
Na segunda parte, dizia, a equipa do Sporting empregaria
táctica diferente e faria como diz o Povo: “perdido por um, perdido por mil” e
jogaríamos assim: médios e avançados, uma vez de posse de bola, atacariam em
massa, em fúria. Quando surgisse o contra-ataque, os interiores e médios a
defender com unhas e dentes, em marcação cerrada, com a ajuda dos três
companheiros de defesa. Por nossa vez procuraríamos, também, contra-atacar
rapidamente, de modo a aproveitarmos possíveis brechas no sistema defensivo do
Benfica, provocadas pela fúria do seu ataque.
É evidente que esta táctica só é possível impor a um
conjunto possuidor de extraordinária preparação física e que na cabeça dos
jogadores haja massa cinzenta… utilizável. Não me afasto da verdade afirmando
que a equipa do Sporting, nesse tempo, possuía as duas coisas: perna e cérebro.
Deixemos o campo das hipóteses e voltemos à realidade do encontro disputado em
25 de Abril de 1948. O Sporting bateu o Benfica por 4-1, ganhando o título de
Campeão Nacional e ficou, definitivamente, detentor da Taça Monumental de “O
Século”!
*Troféu instituído pelo jornal O Século em 1938, a propósito do cinquentenário da introdução do futebol em Portugal (em 1888), e que premiava a primeira equipa a conseguir três títulos nacionais consecutivos ou cinco alternados, ou caso não se registasse nenhuma das situações, quem fosse campeão nacional no 10º ano da sua disputa, o que veio a acontecer em 1949, ano do primeiro tricampeonato leonino.
in Memórias de Peyroteo - A autobiografia do maior goleador do futebol português, págs 118, 119, 120, 121 e 122.
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